A imparcialidade de Sérgio Moro à luz do Direito Judaico

Alberto Diwan, advogado: Não é necessário adentrar em grandes detalhes sobre o caso envolvendo a imparcialidade de Sergio Moro. As mensagens vazadas já foram publicadas, tuitadas, compartilhadas e comentadas intensamente e tudo indica que mais está por vir. O Senado já abordou o tema em uma CPI e em breve o STF terá de se manifestar sobre o assunto, que se ramifica em várias questões: as mensagens são autênticas? Caso sejam autênticas, podemos usá-las como prova, considerando sua origem criminosa? Em caso positivo, ou seja, caso sejam confirmadas a autenticidade e legalidade das mensagens, elas indicam que o então magistrado julgou de forma parcial? Superadas as preliminares, como deve ser julgado o mérito da questão? A troca de mensagens com o MPF sugere que Moro ignorou o dever de imparcialidade do julgador, princípio básico indissociável da Justiça? Tal conduta caracteriza o ato de “aconselhar as partes”, previsto no Art. 254, IV, do Código de Processo Penal, definindo-o como juiz suspeito?

Juízes se uniram para criticar Moro, ao passo que outros prontamente saíram em sua defesa. Mas em tempos de redes sociais, não importa se você é juiz, advogado, jornalista, político ou leigo: todos têm direito de interpretar e opinar de acordo com suas convicções e divulgá-las a quem quiser ler. Proliferam-se, dessa maneira, textos de fãs que apoiam o ministro e de críticos que o repreendem, mesclando-se questões jurídicas, políticas e ideológicas.

A imparcialidade, no entanto, merece ser estudada sob um prisma diferente. Muitos consideram que a consagração deste princípio está definido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, que em seu artigo décimo prevê: “Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um Tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fun­damento de qualquer acusação criminal contra ele”. Hoje parece óbvio dizer que a figura do juiz não deve se confundir com a do acusador e que todos tem direito de ser julgado de forma neutra. Muitos ordenamentos jurídicos pretéritos, no entanto, não respeitavam esta premissa essencial da Justiça, negando ao réu direitos básicos e fundamentais.

Seria a imparcilaidade do juízo um fruto da modernidade? Teria sido originada pela propagação dos ideais iluministas e pelo advento dos direitos humanos? O Réu da Antiguidade era desprovido desse direito? Quando a imparcialidade se tornou a pedra fundamental em que erguemos as bases da Justiça?

Há um sistema jurídico antigo e distante, pouco lembrado e quase nunca estudado, que nos concede respostas à essas questões. Refiro-me ao Direito Judaico, percursor do islamismo e do cristianismo. Não é necessário crer em qualquer divindade para reconhecer o valor histórico do livro mais vendido do mundo a importância de um sistema que fundou as bases da civilização. Como uma das culturas mais antigas do mundo que enfrenta o tema da imparcialidade? O que podemos aprender dos textos antigos até hoje estudados e comentados? Quais as respostas dadas pelo ordenamento jurídico hebraico?

Maimônides (Rabi Moshe ben Maimon, 1135 – 1204), um dos maiores legisladores e codificadores da Lei Judaica, escreve que se o juiz toma emprestado um artigo, ele é desqualificado para julgar litígios envolvendo o emprestador, salvo se também emprestará algo em troca, pois pode sentir-se tentado a favore­cer a parte que lhe emprestou um bem.

A Lei Judaica também proíbe o juiz de julgar o caso envolvendo um amigo, medida necessária para garantir a supremacia de imparcialidade. Maimônides en­sina que a proibição se aplica mesmo que o amigo “não seja membro de sua festa de casamento” ou parte de seus “companheiros mais íntimos”. Basta uma relação de coleguismo cordial para vedar o julgamento. De outro lado, ao juiz também é vedado julgar alguém que odeia, mesmo que não seja propriamente seu inimigo. Essa vedação é claramente mais severa que o próprio CPP, que menciona “amigo íntimo” ou “inimigo capital”.

A lei judaica deter­mina que “os litigantes devem ser vistos igualmente aos olhos e aos corações do juiz”. Maimônides conclui: “Se o juiz não conhece nenhum deles e não está previamente familiarizado com seus atos, este é o julgamento mais justo que poderia ser”.

O sábio também proíbe que dois juízes desafetos atuem no mesmo caso juntos. Isto é, ainda que não sejam suspeitos de atuar com parcialidade para fa­vorecer ou desfavorecer uma das partes, a relação de inimizade entre os próprios juízes pode influenciar e deturpar o julgamento! Nas palavras do sábio, “o ódio que cada um deles carrega para o outro fará com que ele revogue as palavras de seu colega”. Em outras palavras, o Princípio do Juiz Natural prevalece de forma absoluta, ainda que deva afetar o julgamento colegiado e substituir a turma julgadora.

Como exemplo de implementação prática desse princípio, o Talmud (TB; San. 7B-8A) nos conta a famosa história de Rav, que se recusou a julgar um caso envolvendo seu anfitrião. O homem pediu encarecidamente que, como retribuição da bondade e da hospedagem, o rabino atuasse como juiz em um litígio. Rav, sabendo que não conseguiria agir com imparcialidade, transferiu o caso a um colega.

A própria Torá (Bíblia Hebraica) já prenuncia a importância de uma estrutura judiciária e da Justiça pautada na imparcialidade, nos termos dos seguintes versículos: “Juízes e polícias designarás para ti em cada uma de tuas tribos, em todas as tuas cidades que o Eterno, teu Deus, te dá, e julgarão o povo com reto juízo;” “Não torcerás o juízo, nem farás distinção de pessoas a não tomarás suborno, porque o suborno cega os olhos dos sábios e subverte as palavras justas. A justiça, e somente a justiça, seguirás, para que vivas e herdes a terra que o Eterno, teu Deus, te dá”. (Deut. 18:20-23).

As orientações bíblicas, portanto, ressaltam a relevância de um sistema de justiça adequado e dotado de credibilidade, positivando normas que, ao menos teoricamente, coadunam com as finalidades atuais de qualquer ordenamento jurídico. No mesmo sentido, a Torá afirma: “Não fareis injustiça no juízo, não favorecerás (quando não tem razão) as faces do mendigo, nem honrarás as faces do poderoso; com justiça julgarás o teu próximo” (Lev. 19:15). Tal imparcialidade é, de fato, indispensável para garantir o devido processo legal. Rashi (Rabi Shlomo Yitzhaki, 1040 – 1105), ao comentar tal verso, utiliza termos fortes, indicando a gravidade de se transgredir a essência da Justiça, indicando que “isso nos ensina que o juiz que perverte o juízo é chamado de ‘pessoa injusta’, odioso e detestado, condenado à destruição e uma abominação”. O comentarista Sforno escreve que se trata de uma advertência para não se referir severamente a um litigante, e ser indulgente com seu oponente, deve haver equivalência entre Acusação e Defesa. O rabino prossegue e afirma que o versículo quer dizer também: “Não permita que um litigante se sente enquanto seu oponente é obrigado a permanecer de pé”. A base judaica deste princípio também pode ser encontrada no versículo “ao pequeno como ao grande do mesmo modo ouvireis” (Deut. 1:17). É a igualdade em seu aspecto formal por excelência.

Um comentário simples e aparentemente secundário do jurista Max May revela a fascinante cautela dos sábios judeus para assegurar a igualdade entre as partes do processo:

“Os funcionários do tribunal estavam sentados à esquerda e à direita dos juízes, registrando seus argumentos e votos. Os juízes não vestiam roupas oficiais. Da mesma forma, as partes envolvidas foram, em casos de crimes graves, proibidos de usar roupas espalhafatosas. Não lhes era permitido apa­recer em trajes extravagantes, nem vestidos desgastados, a fim de impressio­nar a corte com suas riquezas ou despertar simpatia com sua pobreza. Isto estava em contraste (…) com o costume da Roma antiga, onde os litigantes às vezes apareciam em trajes muito elegantes, acompanhados de numerosos assistentes ou vestidos de luto para influenciar os juízes a seu favor”.

Sabe-se que os juízes, por mais estudiosos e preparados que sejam, estão suscetíveis a erro e a formar um juízo de valor subjetivo ao arrepio dos fatos. Logo, proíbe-se que haja divergência nas roupas das partes, a fim de assegurar a paridade de armas.

A essência do conceito atual de “paridade de armas” também se faz bem evi­dente no comentário da obra Ein Yaacov (Shevuot, 4:1): “Isto significa que o tri­bunal não deve permitir que um litigante se sente, enquanto o outro está de pé; um litigante não deve ter o privilégio de falar enquanto o outro é negado tal privilégio”.

No Midrash Sifra consta a proibição de um litigante expor seu caso pro­lixamente e determinar à outra parte que o faça de forma breve. O contempo­râneo rabino Ephraim Buchwald, ao comentar o processo judicial defendido pelo Talmud, esclarece que “o julgamento deve ser equânime, e justo, sem qual­quer compromisso com as partes”. Na mesma linha, transcreve-se comentário ao versículo (Ex. 23:06) na obra brasileira Torá Viva – A Lei de Moisés:

“O Talmud explica que um juiz não pode dispensar qualquer tratamento diferenciado aos litigantes; ele não pode dirigir-se asperamente a um e suavemente ao outro; se um dos litigantes está sentado, o outro não deve estar de pé. Do mesmo modo, a condição social econômica, religiosa ou intelectual dos litigantes não pode influir no julgamento, apesar da natu­ral e nobre tendência humana de privilegiar os mais fracos em detrimento dos poderosos. Nessa hora, é dever do juiz desconsiderar (“ser cego”) os fatores externos que envolvem os litigantes em si e deter-se exclusivamente nas evidências diretas do caso, sob pena de perverter a justiça”.

Por essa razão, o Talmud (TB; Shav. 30B), visando reprimir qualquer tipo de favoritismo no julgamento, definiu que não apenas eruditos ou pessoas im­portantes deveriam receber assentos no tribunal, como também todos litigan­tes, mesmo aqueles que geralmente não seriam recepcionados com tal honra.

Tais regras procedimentais foram compiladas e positivadas no Shulchan Aruch, o Código da Lei Judaica, que dedica um capítulo inteiro ao que hoje denominamos Princípio da Isonomia:

“Igualar as partes em todos os aspectos. ‘Com justiça julgarás o teu próxi­mo’ (Lev. 19:15). O que significa justiça no julgamento? É igualação das duas partes em tudo. Não se deixará um falar tudo o que precisa, e dizer ao outro: sintetize suas palavras. E não se tratará a um com simpatia e palavras suaves, enquanto ao outro virar a face e falar com ele rudemente. E se um estiver vestido com roupas caras e o outro com roupas humildes, diz-se ao respeitável: ou vesti-lo-ás como tu, ou vestir-te-ás como ele. E não ficará um sentado e o outro de pé, senão ambos de pé; e se o tribunal permitiu-os sentar-se, sentam-se. (…)”.

Teria Sérgio Moro violado tais regras e comprometido a imparcialidade que deve reger sua conduta? Deixo para o leitor interpretar e responder. A cultura judaica enriquece o debate na medida que se aprofunda neste princípio essencial. Obviamente, não devemos julgar o conteúdo das mensagens com base em legislações antigas. É a jurisprudência dos tribunais brasileiros e a doutrina dos juristas brasileiros que deve embasar o Direito pátrio, afastando-se questões políticas e religiosas.

Porém, estudar os ditames jurídicos milenares do judaísmo nos ajuda a clarear questões nebulosas, oferecendo respostas atemporais para questões eternas. Aprofundando-se nas origens de uma regra processual, podemos contemplar sua relevância seus desdobramentos. O estudo e a reflexão, enfim, podem nos presentear com as ferramentas necessárias para construção deste ideal tão antigo quanto a Bíblia, que é a incansável e inexorável busca pela Justiça.


Alberto Diwan é advogado sócio do escritório Davidovich & Diwan Advogados, autor da obra “Justiça Seguirás: a matriz judaica do Direito Penal Constitucional” e do blog “Reflexões Judaicas”. É pós-graduado em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e em Direito Penal pela Universidad Castilla La-Mancha em Toledo (Espanha). Texto publicado no Jusbrasil