Artigo “A China e o Holocausto”, de Marcelo Ninio

Como acontece todo ano, Israel parou ao som de uma sirene para marcar o Dia do Holocausto. Na mesma data, alunos de uma turma da Universidade de Pequim, uma das mais importantes da China, aprendiam sobre as atrocidades cometidas pela ditadura nazista no curso “Civilização judaica em um contexto global”. Para a maioria, este é o primeiro contato com imagens da época e com o contexto histórico do plano de extermínio dos judeus executado pela Alemanha na Segunda Guerra Mundial, me contou Meng Yang, que ministra o curso.

Fluente em inglês e alemão, Meng estudou ídiche e hebraico quando preparava sua tese de doutorado sobre o exílio de judeus em Xangai na década de 1930, quando o mundo oferecia poucas opções de refúgio para os perseguidos pelo nazismo. Em um artigo publicado em 2017, Meng lembra que logo após a chegada de Hitle ao poder, em 1933, a elite intelectual chinesa “sentiu o cheiro da onda antissemita na Alemanha nazista” e enviou uma carta de protesto ao consulado alemão em Xangai.

Entre 1933 e 1941, cerca de 20 mil judeus encontraram um refúgio da perseguição nazista em Xangai, na época um dos poucos lugares do planeta que não exigiam visto de entrada. Além disso, era uma das cidades mais cosmopolitas do mundo, com uma comunidade judaica estabelecida. Em seu livro “Os últimos reis de Xangai”, o jornalista Jonathan Kaufman conta a fascinante história de duas famílias de judeus iraquianos, os Sassoons e os Kadoories, que tiveram um papel determinante na modernização da cidade e deixaram de lado sua rivalidade para se unir no salvamento dos refugiados.

Traumatizados com o ódio contra os judeus que os fizeram deixar suas pátrias na Europa, os refugiados ficaram maravilhados ao constatar que os chineses “desconheciam o antissemitismo”, como disse um deles. Quando os japoneses tomaram o controle de Xangai em 1941, os judeus foram confinados em um gueto. As condições eram precárias, mas eles sobreviveram.

Aliados da Alemanha, os japoneses rejeitaram o plano dos nazistas de afundá-los no oceano, argumentando que eles eram “reféns valiosos”, relata Kaufman em seu livro. Milhares de civis chineses não tiveram a mesma sorte.

No discurso público chinês, observa Meng Yang, o Holocausto é frequentemente usado como referência para lembrar a ocupação japonesa da China, e principalmente o massacre de Nanquim, onde 300 mil civis foram mortos. Assim como em Israel no Dia do Holocausto, todo ano uma sirene é tocada em Nanquim para marcar o aniversário do massacre. Nos últimos anos, a China se inspirou no Yad Vashem, o museu do Holocausto de Jerusalém, em sua reforma do Memorial das Vítimas de Nanquim. Na mídia estatal, o Japão é frequentemente criticado por não ter reconhecido suficientemente os crimes cometidos durante a ocupação, em contraste com a atitude da Alemanha pós-guerra.

Com a derrota do Japão na Segunda Guerra Mundial e a fundação da República Popular da China, em 1949, o termo Holocausto desapareceu do discurso público, explica Meng. A China de Mao era profundamente influenciada pela ideologia da União Soviética, e o nazismo era visto como uma forma extrema de capitalismo. A compreensão dos chineses sobre esse período histórico “era muito diferente da visão internacional nos círculos acadêmicos, e não foi capaz de uma conscientização mais profunda de que o Holocausto foi, de fato, um crime contra a humanidade”.

Tudo mudou com o rompimento das relações sino-soviéticas nos anos 1960, e especialmente a partir da visita de Richard Nixon, presidente dos Estados Unidos, a Pequim em 1972, quando a China entendeu que a nova atmosfera política exigia uma compreensão maior do Ocidente. É desta época a primeira publicação oficial da tradução para o chinês do livro “Ascensão e queda do Terceiro Reich”, do jornalista americano William Shirer, que tornou-se uma referência sobre o assunto no país.

Apesar da relativa liberdade acadêmica da década de 1980, quando a China dava os primeiros passos em sua abertura econômica após a “catástrofe” dos dez anos de Revolução Cultural, Meng afirma que curiosamente o extermínio dos judeus não atraiu a atenção dos pesquisadores chineses. Numa retrospectiva de cem anos de estudos sobre o judaísmo publicada pouco antes do estabelecimento de relações diplomáticas entre a China e Israel, em 1992, não há qualquer estudo sobre o Holocausto.

Atualmente, a perseguição aos judeus durante a Segunda Guerra faz parte do currículo escolar chinês apenas de forma indireta, segundo um estudo publicado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) sobre como o Holocausto é ensinado em escolas ao redor do mundo. Nos livros escolares do país o genocídio dos judeus é comparado ao assassinato de civis chineses pelo Japão.

Segundo Meng, “embora os dois massacres tenham formas bastante diferentes, o povo chinês tende a colocá-los no mesmo contexto”. A educação sobre o Holocausto na China “lamentavelmente” é ainda superficial em comparação com o massacre de Nanquim, afirma ela, e permanece limitada principalmente às universidades e à “politização” do debate em torno dos crimes cometidos pelo Japão.

A politização ganhou outras frentes. Hoje o Holocausto está de volta ao discurso do governo chinês como forma de rebater as acusações de que comete genocídio contra minorias muçulmanas na província de Xinjiang, no extremo oeste do país. Como o Ocidente ousa nos dar lições de moral tendo em sua história atrocidades como a escravidão e o Holocausto, questionam os chineses.

Há múltiplos relatos de que abusos foram cometidos pela China em Xinjiang. Mas equipará-los a genocídio sem evidências incontestáveis, como fez a diplomacia de Donald Trump no fim de seu governo, corre o risco de ter dois efeitos negativos: banalizar uma acusação gravíssima e dar argumentos ao governo chinês para rejeitar qualquer questionamento sobre abusos em Xinjiang como artimanha política, ou puro exagero retórico.

Publicado por Marcelo Ninio / O Globo