Artigo de Sofia Débora Levy “Por dentro do trauma: no Holocausto e na contemporaneidade” é publicado no Estadão

O comentário há muito propalado de que os judeus se deixaram levar como gado, sem reagir, durante o Holocausto, traz em seu bojo uma visão estigmatizante sobre esse grupo que, qualitativa e quantitavamente, foi o mais atingido pelos nazistas.

Revisando criticamente esse comentário, é importante diferenciar que os nazistas terem tratado os judeus como não humanos, piores do que animais, conforme ilustrado nos seus registros da época, não significa que essas pessoas tenham se deixado tratar como tais. Apesar de estarem em maior número do que os algozes que lhes cercavam, os recursos materiais, legais e formais foram subtraídos dos judeus, que tiveram sua cidadania negada. Os traumas sucessivos de exclusão social, expulsão do lar, desmembramento familiar e deportações, nos suscita o questionamento acerca de quais seriam as condições internas, psicológicas para, apesar da desproporcional covardia nazista, conseguir reagir individual e coletivamente – como, de fato, reagiram.

Na maioria dos relatos de sobreviventes do Holocausto, encontramos expressões aludindo à condição ininteligível diante dos mais diversos traumas que lhes foram infligidos pelos nazistas. Expressões como “Não há palavras…”; “Não dá pra entender…”, traduzem o espanto e a dificuldade de colocar em palavras as situações que, até então, desconheciam em suas referências de normalidade social.

A vivência do horror da violência física e psicológica leva à dificuldade de enunciação. Com vistas a auxiliar na superação desse impasse, devemos nos esforçar para descrever o mal perpetrado pelos algozes, que levou à desestruturação psíquica das vítimas. Afinal, se ele foi racionalmente arquitetado, planejado, nominado pelos algozes, cabe a nós nominar o mal, ainda que atravessando as suas dolorosas consequências. Somente assim, essas dores poderão ser elaboradas.

Seja no Holocausto ou em outros contextos, a violência psicológica, mesmo sem deixar marcas físicas, abala a estrutura psíquica pelo choque diante da violação da dignidade humana. As plenas capacidades de pensar, sentir e agir com base na vontade própria ficam alteradas e comprometem a responsividade da vítima. A expectativa frente ao comportamento de vítimas de trauma deve ser escalonada considerando esse comprometimento.

Nas diversas formas de violência psicológica, a mentira se faz presente, sejam aplicadas a situações microssociais, como nos relacionamentos afetivos, ou macrossociais – como no negacionismo e revisionismo histórico. Senão, vejamos:

A manipulação de informações foi uma das estratégias fortemente utilizadas pelos nazistas para confundir e dominar não só suas vítimas, evitando reações em massa, mas também a população civil ariana e colaboracionista. Veiculadas sob o terror de um governo totalitarista, a confusão mental, a dúvida e a insegurança, advindas das informações manipuladas, levavam as pessoas a se calarem por medo das represálias mortais diante dos questionamentos em busca de verdades que velavam terríveis segredos.

O cinismo revestia o sorriso dos covardes que se alçavam sobre as vítimas, cumprindo as leis que estimulavam as agressões físicas e depreciações morais. Distorções pautadas em preconceitos incidiam sobre judeus, ciganos, negros, eslavos, deficientes físicos e mentais, evocando estereótipos há muito reiterados sobre esses grupos, sobre os quais incidiam falsas acusações e culpabilizações – como na obrigatoriedade dos judeus arcarem com os danos causados pelos arianos na destruição das lojas e instituições judaicas durante a Kristallnacht, a Noite dos Cristais, em 9 de novembro de 1938, com atos de vandalismo em todo território da Alemanha e Áustria.

A chantagem emocional se fazia presente a cada obrigatoriedade imposta pelos nazistas no desmembramento familiar, sob pena de morte; além disso, a cada situação em que, por simples exercício sádico de poder, jogava-se com ameaças de morte entre parentes ou membros de um mesmo grupo.

Considerando essas e outras formas de violência perpetradas pelos nazistas, a anulação existencial imposta sobre os judeus e demais grupos considerados indesejados antecedeu o extermínio físico de milhões de seres humanos. Assim, primeiramente, deu-se o genocídio ontológico.

Diversas dessas formas de violência psicológica foram vivenciadas pelas vítimas de forma abrupta. A Psicologia e a Psicanálise esclarecem que o trauma psicológico invalidante se dá com o choque diante de uma situação inesperada frente à qual não se tem estrutura para lidar. Sándor Ferenczi, psicanalista contemporâneo de Freud, destaca que o trauma se instaura diante da denegação do outro. A denegação ocorre quando a vítima não tem a sua vivência ratificada, quando o outro a nega, mesmo sabendo que, de fato, aconteceu. Com isso, a vítima sente-se sozinha para lidar com o fardo da vivência dolorosa e com o peso de não poder compartilhá-la para que, se expressando possa abrir caminho para um assentamento dos dados no seu psiquismo. Nos campos de concentração, os algozes, numa postura de denegação, naturalizavam a inversão da normalidade imposta às vítimas. Essa postura foi mantida por muitos nazistas mesmo depois do fim da Segunda Guerra Mundial.

Dentre as consequências das vítimas do sistema concentracionário nazista, a mais emblemática é o estado de muselmanner, último estágio antes da morte por inanição e apatia extremas, no qual, sem forças físicas e psicológicas, a vítima não mais reage ao mundo. Após a libertação dos campos de concentração, quando a verdade acerca da vida e da morte ali veio à tona, não havia uma categoria que abarcasse as condições das vítimas. Para tal, em 1954, numa Convenção Internacional de Psiquiatria em Copenhagen, foi proposta a Síndrome do campo de concentração e extermínio, referente ao conjunto de sintomas advindos das patologias corporais, morais e anímicas pela opressão vivida.

Mais recentemente, com os avanços dos estudos sobre trauma e violência, nas áreas da Medicina e da Psicologia, tornou-se conhecida a Síndrome ou Transtorno de Estresse Pós-Traumático, cujos sintomas, dentre outros, incluem memórias traumáticas intrusivas e persistentes; dificuldade de concentração; distúrbios do sono; hipervigilância; angústia; desesperança; insegurança, ansiedade e incapacidade de conectar-se à vida.

Diante desse quadro, mesmo aqueles que convivem, social ou profissionalmente, com vítimas de trauma, apresentam reações de espanto e perda das palavras para nominar a maldade da violência e as dores relatadas pelas vítimas. Ajudar na enunciação é uma das etapas para auxiliarmos na elaboração dos traumas vivenciados. Essa ajuda se dá com base na compreensão, na empatia, a partir de uma escuta crível que proporciona uma base de confiança para que a vítima consiga compartilhar suas dores. Ter a sua verdade acreditada é o primeiro passo para a retomada da regularidade psíquica perdida.

Desenvolvendo a capacidade de reconhecer a vileza da perversidade humana e suas trágicas consequências, talvez possamos mais fortemente reinvestir cultural e socialmente no alimento anímico para um mundo mais saudável. O Dia Internacional dos Direitos Humanos, reiterados em 1948, a cada 10 de dezembro nos relembra dessa nossa responsabilidade uns com os outros.

Sofia Débora Levy é psicóloga Clínica; diretora do Memorial às Vítimas do Holocausto-RJ; representante para a Memória do Holocausto do Congresso Judaico Latino-Americano e autora do livro “Por dentro do trauma: a perversidade no Holocausto e na contemporaneidade” (Editora Letra Capital).

Texto publicado originalmente no Estadão