Biografia traz novas revelações sobre Josef Mengele, o “Anjo da Morte”

O historiador americano David G. Marwell achou um grotesco documento quando, no início dos anos 1980, fazia pesquisas em Bad Arolsen, cidade alemã que abriga um importante arquivo sobre o Holocausto. Tratava-se de um formulário médico encaminhado ao laboratório das SS — as tropas de elite nazistas — por um médico do campo de concentração de Auschwitz. A requisição, assinada em 29 de junho de 1944 por Josef Mengele, instruía o laboratório a preparar seções histológicas (cortes finos de tecido biológico, para observação no microscópio) com material colhido do espécime que acompanhava o formulário: a cabeça de uma criança de 12 anos. Marwell trabalhava então no Escritório de Investigações Especiais (OSI, na sigla em inglês), órgão do Departamento de Justiça dos Estados Unidos estruturado para esclarecer crimes do nazismo. Mesmo com toda a sua experiência na área, ficou perturbado com aquela descoberta. Que espécie de curiosidade sádica motivaria um médico a encaminhar a cabeça de uma criança morta ao laboratório? Anos depois, Marwell integraria o grupo do OSI encarregado de descobrir o paradeiro do mais infame dos médicos-carrascos nazistas, foragido desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele esteve em São Paulo, em 1985, acompanhando a equipe internacional de especialistas forenses cujo laudo confirmaria a identidade do esqueleto exumado de uma sepultura com nome falso na cidade de Embu das Artes: sim, era Mengele. Passados 35 anos desse evento, Marwellacaba de lançar a biografia do homem que assinava aquele sucinto e sinistro documento encontrado por acaso em Arolsen: “Mengele — Unmas kingthe´Angel of Death´”” (“Mengele — Desmascarando o ´Anjo da Morte´”)

A narrativa bem estruturada, o rigor no cruzamento de fontes variadas, a contextualização do personagem biografado no quadro geral da história alemã do século XXtem inúmeras qualidades. O autor afasta-se do estereótipo do “doido sádico” que tinha prazer em torturar e matar suas vítimas. Sua biografia revela antes um homem racional, que defendia sua visão de mundo não com paixão destemperada, mas com rigor frio. Nem por isso Mengele sai do livro “humanizado” ou “normalizado”: ao contrário, é tanto mais terrível perceber que seus crimes não resultaram de surtos de uma mente desequilibrada, mas foram a consequência de uma versão desvirtuada da ciência.

Quando começou a estudar com mais detalhe os procedimentos de Mengele, Marwell constatou que não foi por mera curiosidade mórbida que o médico alemão encaminhou a cabeça de uma criança morta ao laboratório. Mengele estava conduzindo uma pesquisa sobre noma, doença que grassava entre as crianças ciganas do campo. Causada por uma bactéria, ela provoca inchaço e necrose dos tecidos da boca. Um tratamento conjugando medicamentos, vitaminas e nutrição reforçada mostrou-se capaz de deter o progresso da doença. Mas há uma perversidade de origem na pesquisa: a doença só viceja entre crianças subnutridas; o tratamento, portanto, remediava o mal produzido pelas condições sub-humanas de Auschwitz. “Medidas sanitárias simples e um padrão mínimo de nutrição teriam bastado para conter o surto”, conclui Marwell. Nenhuma das crianças “curadas” sobreviveria ao campo.

Noma talvez tenha capturado a atenção de Mengele porque desfigura suas vítimas: uma das primeiras pesquisas do futuro médico de Auschwitz, ainda como estudante na Universidade de Frankfurt, foi sobre a hereditariedade de malformações no rosto, como o lábio leporino. Seus interesses centrais, porém, não eram as doenças infecciosas, mas a genética, a antropologia e a chamada “higiene racial”. Para tanto, foi providencial que Mengele tivesse entre suas atribuições a seleção dos deportados que desembarcavam do trem em Auschwitz II — Birkenau, a seção do campo onde ele trabalhava. A tarefa consistia em separar os aptos ao trabalho forçado daqueles que seriam levados de imediato à câmara de gás — velhos, fracos, doentes, mulheres grávidas, crianças pequenas. Mengele aproveitava o posto de senhor da vida e da morte para selecionar espécimes que imaginava úteis para suas inquirições raciais — em particular, gêmeos e anões. Por ordem sua, um pavilhão do campo foi separado para os gêmeos, que eram submetidos a testes e medições variadas. Esgotada a pesquisa com os gêmeos vivos, Mengele às vezes mandava matá-los, para medir e pesar órgãos internos.

Essas atividades não eram mero passatempo de um médico-monstro: integravam-se aos programas científicos da Alemanha, todos eles orientados pelas doutrinas racistas do regime de Hitler. De seu posto em Auschwitz, Mengele colaborava com o mentor de seus estudos universitários, o barão Otmar von Verschuer, expoente da pesquisa com gêmeos, que nesse tempo instalara-se em Berlim, no Instituto Kaiser Wilhelm de Antropologia, Genética Humana e Eugenia. Mengele também amparou Karen Magnussen, associada do mesmo instituto, em pesquisas sobre a coloração dos olhos.

Marwell desmente a ideia, divulgada por biógrafos anteriores, de que Mengele injetasse corante nos olhos de seus gêmeos na tentativa de produzir um azul “ariano”. Ao que parece, ele e Karen Magnussen na verdade tentavam descobrir se certos hormônios teriam a propriedade de causar alterações na cor da íris. A dupla também era fascinada pela heterocromia, condição rara em que cada um dos olhos de uma pessoa é de cor diferente entre si. Entende-se assim o entusiamo de Mengele por um clã de ciganos em que essa condição se verificava em mais de uma dupla de gêmeos. Sistemático, o médico de Auschwitz documentou a árvore genealógica da família e fez todas as medições necessárias em quatro pares de gêmeos, que depois foram mortos com injeções de clorofórmio no coração. Os olhos raros foram extraídos e remetidos para Karen Magnussen.

Em outra ocasião, Mengele descobriu, entre os recém-chegados ao campo, um homem corcunda, acompanhado do filho adolescente que tinha uma deformidade no pé. Mesmo procedimento: os dois passaram por exames e medições exaustivos e depois foram assassinados. Mengele orientou o prisioneiro que realizava as autópsias a não mandar os corpos para o incinerador: os esqueletos seriam doados ao Instituto Antropológico de Berlim.

Filho de um industrial da pequena cidade de Günzburg, Josef Mengele herdou do pai a simpatia pelo nacionalismo extremado, mas não foi nazista de primeira hora. Filiou-se ao Partido Nacional-Socialista só em 1937. Como oficial médico das SS, acompanhou, de 1941 a 1943, a Divisão Viking, de engenharia, em sua campanha na Ucrânia e na Rússia. As atribuições principais dessa divisão eram liberar estradas e construir pontes para o avanço do Exército alemão, mas ela também participou de combates — e de massacres da população judaica. Não há registro de que Mengele tenha se envolvido nesses pogroms (palavra russa que dá nome aos massacres promovidos pelo Exército nazista), embora com certeza soubesse deles. De volta à Alemanha com duas condecorações no peito, Mengele conseguiu o posto no qual consolidou sua fama nefasta: médico em Auschwitz, a “capital do Holocausto”, conforme a expressão cunhada pelo historiador Peter Hayes.

Quando os soviéticos liberaram o campo, em 1945, Mengele já não estava mais lá. Integrou-se a uma unidade médica do Exército regular — e se desfez do uniforme da SS, que o denunciaria como criminoso de guerra. Foi preso em um campo de prisioneiros de guerra administrado pelos americanos. Liberado, assumiu um nome falso e trabalhou em uma fazenda na Bavária, até que, em 1949, conseguiu fugir para a Argentina, então um santuário de foragidos nazistas.

Em Buenos Aires, Mengele prosperou. Chegou a sócio de uma companhia farmacêutica. Circulando na comunidade de refugiados alemães, encontrou-se algumas vezes com Adolf Eichmann. Confiante de que estava seguro, Mengele até visitou seu país natal, em 1956. Por procuração, divorciou-se da primeira esposa, Irene, mãe de seu único filho, Dorf. E se casou com a viúva de um irmão seu, em manobra planejada pelo pai para impedir a dispersão da herança familiar. Casado, com negócio próprio e nome de batismo reabilitado: tudo corria bem para o nazista impenitente quando veio o alerta de que a Alemanha pediria sua extradição para levá-lo a julgamento. Em 1959, Mengele fugiu, sozinho, para o Paraguai, onde tampouco se sentiu seguro. Desapareceu no Brasil, no ano seguinte.

Quase metade do livro de Marwell é dedicada à reconstituição dos esforços para localizar o mais famoso dos nazistas foragidos. No final dos anos 1950, as autoridades alemãs cometeram o erro de empregar a polícia local de Günzburg nas investigações. A fábrica da família Mengele sustentava a economia da cidadezinha, e é claro que colaboradores do fugitivo perceberam que o cerco se armava — por isso Mengele deixou a Argentina. O Mossad, serviço secreto israelense, que fora tão eficiente na captura de Eichmann, também falhou: documentos revelados em 2017 mostram que agentes localizaram Mengele nos arredores de São Paulo, em 1962, mas, na falta de uma identificação 100% positiva, a operação foi abandonada. Só em 1985, com o aniversário de 40 anos da liberação de Auschwitz e a pressão de um novo movimento de vítimas de Mengele liderado por Eva Kor — que, com sua irmã gêmea Miriam, foi objeto dos estudos de Mengele —, Alemanha, Israel e Estados Unidos uniram forças para localizar o chamado “Anjo da Morte”. Uma busca na casa de um funcionário da empresa dos Mengeles descobriu uma carta remetida do Brasil, na qual um correspondente anônimo comunicava a morte de “nosso amigo mútuo”. Foi a pista que conduziu à ossada no cemitério de Embu.

Os procedimentos para assegurar que aqueles eram mesmo os restos de Mengele foram demorados. Marwell critica o desleixo com que as autoridades brasileiras conduziram a exumação — ao quebrar a tampa do caixão, o coveiro danificou o crânio —, mas manifesta simpatia pelo então diretor da Polícia Federal, Romeu Tuma. O biógrafo pontua um dado irônico no exame dos ossos: para determinar que eles pertenciam a um homem “caucasoide” (branco europeu), foram usadas técnicas antropométricas similares àquelas que Mengele empregava em seus esforços para assegurar a pureza racial do Reich. As investigações só foram encerradas em 1992, quando a então recente técnica de identificação por DNA confirmou: o esqueleto era de Josef Mengele.

Mengele morreu aos 67 anos, em 7 de fevereiro de 1979. Nadava na praia em Bertioga, no litoral paulista, quando sofreu um derrame cerebral. Nunca expressou remorso pelos horrores que cometeu. No final da vida, em carta ao filho, reafirmou a convicção de que sempre agira pelo bem do Volk — o povo e a nação germânicos. “Não me sinto minimamente compelido a me justificar ou me desculpar”, escreveu. Se a identificação do cadáver desenterrado no Brasil despertou suspeitas conspiratórias, é porque, argumenta Marwell, há um natural sentimento de irresolução diante do fato de que Mengele morreu em um dia de lazer na praia, sem ter jamais prestado contas por seus crimes. É o sentimento que Hans-Eberhard Klein, chefe dos investigadores alemães, expressou em 1992, quando deu o caso por encerrado: “Nós, promotores de Frankfurt (…), dizemos aos sobreviventes do Holocausto e aos sobreviventes dos experimentos desumanos de Mengele: preferiríamos ter apresentado Mengele em vida, para provar sua culpa no tribunal”.

Fonte: O Globo


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