Em Israel, não basta ser inovador

Fundada há 3.800 anos, a antiga cidade portuária de Jaffa é tida pelos judeus como a porta de entrada de Israel. Foi por lá que muitos desembarcaram, ainda no século 19, para então se reestabelecer na região. O local, que começou como um centro de comércio, expandiu-se para se tornar a capital cosmopolita Tel-Aviv — e a Jaffa atual virou um dos pontos mais descolados da cidade.

Butiques e galerias de arte dividem o espaço de ruas estreitas com patinetes elétricas das startups Bird e Lime. Essa mistura da tradição com o contemporâneo é vista em todo o país. De Tel-Aviv aos desertos no interior, construções antigas convivem com edifícios imponentes que abrigam empresas globais.

A modernização acelerada tem a ver com o rápido crescimento das empresas de tecnologia do país. De 2009 a 2018, as startups israelenses receberam 43 bilhões de dólares em investimentos e colecionaram histórias que ficaram conhecidas globalmente.

O gigante de tecnologia Google pagou 1,3 bilhão de dólares pelo aplicativo de trânsito Waze; a fabricante de microprocessadores Intel desembolsou 15,3 bilhões em troca da empresa de sistemas para carros autônomos Mobileye; e companhias como Wix, de construção de sites, e Fiverr, de trabalhos temporários, estrearam em bolsas de valores americanas. Segundo a organização Startup Genome, Israel é o país com maior número de startups per capita. A densidade de empresas inovadoras em Tel-Aviv só perde para o Vale do Silício.

O sucesso na área de tecnologia fez o país ganhar o apelido de “nação das startups”, título original do best-seller dos escritores Dan Senor e Saul Singer, de 2009. Hoje, no entanto, Israel busca ir além, para não se acomodar com os casos de sucesso anteriores. A competição crescente fez o país traçar uma nova meta: em vez de ser “a nação das startups”, quer se tornar “a nação das scaleups”.

A universidade London School of Economics define scaleup como uma empresa que cresce 20% anualmente durante, pelo menos, três anos seguidos. São negócios com vantagens comparativas, modelos comprovados e grande chance de expandir as receitas rapidamente. No caso das startups de Israel, chegar a esse estágio depende obrigatoriamente de atuar além do país de 8,5 milhões de habitantes. “Somos uma pequena nação e não existe a opção de colaborar com nossos vizinhos.

As startups precisam ir ao exterior para ter sucesso”, diz Fej Shmuelevitz, vice-presidente de operações do Waze, que está na companhia desde sua fundação em 2008. O Waze mudou a percepção do potencial das startups de Israel. O aplicativo tem hoje 115 milhões de usuários ativos no mundo — e o Brasil é um dos cinco maiores mercados.

O plano do governo israelense é multiplicar histórias desse tipo e impulsionar setores promissores. “Agora que nosso ecossistema amadureceu, encorajamos as startups a não fechar uma venda nos estágios iniciais. Elas devem se tornar líderes globais e beneficiar toda a economia israelense”, diz Ran Natanzon, diretor de inovação no Ministério de Relações Exteriores de Israel. Duas medidas têm ajudado. De um lado, os empreendedores protagonistas dos sucessos anteriores agora têm menos tentação de vender o negócio.

De outro, o governo reduziu o imposto sobre o lucro das empresas — hoje em 23% — para 5% em certas áreas. Algumas apostas são em novidades para carros, cibersegurança, inteligência artificial, internet das coisas, saúde e serviços financeiros. A Autoridade de Inovação de Israel, uma agência de fomento ao empreendedorismo, tem uma divisão focada em fazer as startups ganhar mercado.

A agência começou no ano passado a oferecer uma linha de incentivos para que novos negócios saiam da fase de pesquisa. Cerca de 60 empresas receberam 20 milhões de dólares em 2018. “Colocamos dinheiro em tecnologias promissoras e de alto risco que o mercado ainda não explora”, diz Sagi Dagan, vice-presidente da divisão.

As vendas podem chegar até terras brasileiras. Seis startups de Israel participaram em agosto da missão comercial ScaleUp inBrazil, testando seus produtos. A startup israelense de registros de produtividade e saúde de árvores SeeTree, uma das participantes, recebeu aportes de 15 milhões de dólares com participação do fundo brasileiro Mindset Ventures.

A fórmula aplicada para a criação da futura “nação das scaleups” reúne cinco agentes fundamentais: academia, Forças Armadas, governo, multinacionais e investidores. O primeiro passo é incluir aulas de computação no currículo do ensino infantil ao ensino médio. Tais conhecimentos são aprimorados no serviço militar israelense, obrigatório para homens e mulheres, onde frequentemente surgem ideias de negócios nas áreas de tecnologia e cibersegurança.

Os interessados em continuar a educação se inscrevem nas universidades do país, seis delas entre as 500 melhores do mundo em ciência da computação. A produção científica é apoiada pelo governo. Israel é o país que mais investe em pesquisa em relação ao produto interno bruto: 4,25%. Além disso, o governo investiu mais de 100 milhões de dólares em 213 empresas em 2018.

Se Israel vai ao exterior, o exterior também vai até Israel. A presença de universidades e negócios inovadores atrai multinacionais e investidores. Israel tem mais de 350 centros de pesquisa estabelecidos no país, propriedades de gigantes de tecnologia, como Alibaba, Apple, IBM e Microsoft. Seus logotipos estão estampados nos arranha-céus de Tel-Aviv ou enfileirados nos poucos edifícios construídos no Deserto do Neguev, que rodeia a cidade de Berseba. As startups israelenses captaram 7,5 bilhões de dólares com fundos em 2018, seis vezes o valor recebido por start-ups brasileiras no mesmo ano. Cerca de 70% dos recursos vieram de estrangeiros.

O caminho para se tornar a “nação das scaleups” não é livre de dificuldades. O IVC, instituto de pesquisa especializado na indústria de tecnologia israelense, ressalta que a dependência das startups em relação ao exterior pode expô-las às flutuações da economia mundial, desde a variação cambial até o surgimento de concorrentes locais. E, dentro de casa, Israel questiona se as áreas em que investe terão, de fato, uma demanda global — carros autônomos ainda estão distantes de se tornar algo rotineiro, por exemplo. O país tem também como meta aumentar o número de trabalhadores na indústria da tecnologia, dos atuais 9% para 12% da força de trabalho — e isso exige, além de investimentos em educação, esforços para integrar a população árabe do país. Alguns obstáculos são estranhos ao Brasil. Outros, nem tanto. E nesse ponto é que podemos nos inspirar no exemplo de Israel. Afinal, no mercado de tecnologia o espaço para novos líderes globais é restrito.

No começo de maio, as Forças de Defesa de Israel bombardearam preventivamente um prédio na Faixa de Gaza. Não seria nada de novo se o edifício não abrigasse uma unidade de hackers da organização islâmica Hamas que se preparavam para fazer um ataque cibernético, segundo informou o Exército israelense. A ofensiva mostra como os conflitos físicos estão se misturando aos virtuais e é um exemplo prático da ascensão do mercado global de cibersegurança, estimado em 153 bilhões de dólares em 2018 e com projeção para chegar a 248 bilhões em 2023, de acordo com a empresa de pesquisas MarketsandMarkets.

Os primeiros esforços de Israel na área de cibersegurança datam de 2002, com a criação da Agência de Segurança da Informação para controlar sistemas computadorizados. Em 2010, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu estabeleceu um plano nacional para tornar Israel um dos cinco países líderes em cibersegurança. Quatro anos depois, o governo determinou que a cidade de Berseba, localizada no Deserto do Neguev e 110 quilômetros ao sul de Jerusalém, deveria se tornar a capital cibernética israelense.

No Parque de Tecnologias Avançadas Gav Yam Neguev, reúnem-se as características que transformaram Israel em “nação das startups”: lá estão a Universidade Ben Gurion, com um centro de pesquisa em cibersegurança que coopera com o governo e com a indústria; unidades de inteligência das Forças de Defesa de Israel; centros de pesquisa e filiais de multinacionais; startups especializadas em cibersegurança; e a equipe de respostas emergenciais cibernéticas de Israel (Cert), operada pela Diretoria Nacional de Ciber. Ela une os órgãos de segurança e supervisiona a defesa civil contra ataques cibernéticos. Também lidera os esforços de inovação na área. “Oferecemos subsídios anuais para empresas e trabalhadores se estabelecerem em Berseba”, diz Lavy Shtokhamer, diretor do Cert. “Junto da Autoridade de Inovação de Israel e do Ministério das Finanças, estamos prestes a abrir um laboratório de inovação tecnológica para fortalecer as startups de cibersegurança e de serviços financeiros, de Israel e de outros países.”

Tanta demanda pode ter surgido da preocupação do país com o ciberterrorismo, mas atraiu também empresas e usuários apreensivos com ataques cibernéticos cada vez mais sofisticados. O avanço de tecnologias como a internet das coisas faz com que todo aparelho esteja conectado e, portanto, seja um potencial alvo de criminosos virtuais. Em abril, a consultoria britânica PwC inaugurou em Berseba seu centro de segurança para tecnologias operacionais (as tecnologias que controlam processos físicos).

“Israel está atrás apenas do Vale do Silício em número de startups de cibersegurança. Na área de tecnologias operacionais, o país pode se tornar líder mundial”, diz Rafael Maman, líder de cibersegurança da PwC Israel. Quem atende as empresas nessa área são o governo e as multinacionais, mas cada vez mais as scaleups israelenses se juntam ao grupo. A maior delas é a CheckPoint, com mais de 100.000 empresas no mundo como clientes. Apenas em 2018, a CheckPoint bloqueou 100 milhões de ataques que usavam técnicas antes desconhecidas pelos sistemas dos clientes.

A companhia abriu o capital em 1996 e está avaliada em cerca de 18 bilhões de dólares, quase o mesmo valor da empresa de alimentos JBS, segundo dados da consultoria Economatica. “A infraestrutura ao nosso redor é frágil e o cibercrime está crescendo, cometido por indivíduos ou países”, diz Gil Shwed, fundador e presidente mundial da CheckPoint. “É um setor em constante evolução e que precisa sempre de camadas adicionais de proteção.” A segunda maior scaleup israelense em cibersegurança é a CyberArk, que abriu o capital em 2014 e é avaliada em cerca de 4 bilhões de dólares. “Lembro de como o ICQ (mensageiro israelense que fez sucesso nos anos 90) foi adquirido pelo site AOL apenas dois anos depois de sua criação.

Não havia muita gente que entendesse o conceito de escalar uma startup na época. Hoje isso mudou. Nós nos tornamos um produto de exportação, assim como todo o setor de cibersegurança”, diz Udi Mokady, presidente da CyberArk. A companhia atende 4.600 clientes em mais de 90 países. Outra scaleup, a Cybereason, já obteve 388 milhões de dólares em investimentos. Seu maior financiador é o SoftBank, conglomerado de telecomunicações japonês dono dos maiores fundos de investimento em startups do mundo, os Vision Funds I e II. Na cidade de Berseba, o governo de Israel espera reunir ideias e repetir tais sucessos, criando um oásis contra o ciberterrorismo — tenham esses ataques alvos públicos, privados, militares ou civis.




Fonte: Revista Exame