Michel Laub: “Do nazismo ao WhatsApp”

Até poucos anos atrás, a mera citação do nazismo por um debatedor podia indicar a derrota do seu argumento. Em parte isso se devia a uma piada do advogado americano Mike Godwin – “à medida que uma discussão se alonga, a chance de surgir uma analogia envolvendo Hitler tende a 100%” -, em parte ao senso comum: por mais que a retórica fosse espichada, seria difícil convencer um cidadão do Ocidente no início do Século XXI de que ele estava politicamente próximo da Alemanha da década de 1930.

Com o ressurgimento eleitoral da extrema direita no mundo, porém, Godwin perdeu um pouco da graça. E dois livros da filósofa alemã Hannah Arendt (1906-1975) voltaram a ser importantes para explicar aspectos do fenômeno: “Origens do Totalitarismo” (1951), tratado histórico-filosófico cujos objetos são o nazismo e o stalinismo, e “Eichmann em Jerusalém” (1963), reportagem ensaística sobre o julgamento de um funcionário do III Reich numa corte israelense em 1961.

Vale a pena ler ambos em sequência. O segundo aplica num caso concreto algumas das ideias do primeiro. Eichmann foi levado a Israel clandestinamente, após ter sido raptado pelo Mossad num esconderijo argentino, e seu julgamento representava um aspecto sensível da experiência recontada naquela corte, para aqueles juízes e aquela plateia de imigrantes forçados. Afinal, o réu fora o responsável pelas “transferências” internas e externas de judeus antes e durante a Segunda Guerra. Seu departamento executou as diretrizes teóricas que, numa evolução feita de avanços e retrocessos, começando no isolamento de doentes psiquiátricos e terminando no uso de gás Zyklon B, acabariam dando forma industrial ao que hoje se chama de Holocausto ou Shoá.

A questão levantada por Arendt é se o resultado do julgamento, que condenou Eichmann à morte igualando seus crimes aos dos mais altos chefes nazistas, não continha um erro de natureza. Como ela mesmo havia mostrado em “Origens…”, é da essência dos regimes totalitários tornar nebulosas certas relações de causa e efeito nos atos oficiais. No caso de um burocrata de médio escalão, cuja rotina era assinar papéis e frequentar reuniões que definiam os passos logísticos de uma tarefa “técnica”, as confusões criadas pelo regime – na relação entre diferentes órgãos administrativos, nos choques entre governo, partido e vanguardas do movimento nazista – criaram zonas nebulosas de responsabilidade, pautadas por sobreposições legais, linguagem eufemística dos documentos e propaganda em constante mutação.

Nessa barafunda que funde as noções de público e privado, arrebanhando seguidores por convencimento tanto quanto por terror, tipos como Eichmann encontram sua identidade em arremedos de teorias sobre dever e destino – sumindo na máquina que lhes fornece uma ilusão de pertencimento expressa em bravatas e clichês. Não que ele fosse inocente: muito longe disso, conforme a própria Arendt diz com clareza. Mas Israel provavelmente julgou o agente de um outro fenômeno: um tipo moderno de “massacre administrativo”, cuja impessoalidade distancia os algozes de suas vítimas, a ponto de tudo parecer um mero conjunto de atos miúdos, inevitáveis e autônomos entre si, algo que depois da publicação do livro ficou conhecido como “banalidade do mal”.

Se as teorias de Arendt seguem tendo importância hoje, não é por causa da recente discussão sobre Stalin que tomou por alguns dias a internet e a imprensa brasileira. Nem gostaria de entrar no assunto, que está claramente fora de hora e propósito, apenas registro que as classificações usadas e combatidas pelos debatedores em parte vêm do que a autora escreveu em “Origens…” e complementou em “Eichmann…”: sua controversa distinção entre as bases da tirania (hierarquia, dominação sem persuasão), na qual se incluiria o fascismo (com seu objetivo de tomar o Estado), e as do totalitarismo (atomização, fim da espontaneidade e da intimidade, dominação mundial), que poderiam igualar alguns – mas não todos, e nem sempre no mesmo patamar moral – dos regimes da União Soviética e do III Reich.

Publicado no Valor