O crescimento da apologia ao nazismo no Brasil

Responsável pela guarda de prédios do governo de Minas Gerais até o mês passado, o policial militar Thiago César Moraes evita usar a palavra “judeu” em suas redes sociais. Faz o mesmo quando usa o aplicativo de mensagens Telegram para participar de grupos de conversas que, em suas palavras, tratam “de desconstrucionismo e revisionismo histórico bastante interessantes”. Em vez da palavra “judeu”, Moraes usa o código ((( ))), uma estratégia para supostamente evitar bloqueios de perfil.

Em uma postagem realizada em fevereiro, o policial celebra o acesso, via Telegram, a uma “tonelada de vídeos originais dos comícios e das falas públicas do líder do nacional-socialismo alemão (sim, o homem cujo nome é proibido sequer mencionar)”, ele próprio destaca. “O que ele dizia já na década de 30 nunca foi tão contemporâneo”, escreveu o policial da ativa mineiro, dizendo que professores de história mentiram ao ignorar, em sua visão, o sucesso da economia nazista alemã e da formação de uma nação soberana “onde não havia luta de classes”.

Em março, a revista ÉPOCA perguntou à assessoria do governador mineiro Romeu Zema se manifestações de cunho discriminatório eram toleradas na Polícia Militar. Por meio de nota, a própria corporação disse que as postagens não têm vinculação institucional e que havia sido instaurado um “procedimento apuratório” no âmbito da corregedoria para verificar a veracidade das postagens e “adotar medidas cabíveis”. Na nota, a polícia mineira registrou também que “repudia veementemente toda e qualquer manifestação discriminatória e antissemita”.

Em julho, ÉPOCA voltou a perguntar ao governo mineiro em que pé estava a investigação da Corregedoria. “O fato está em apuração, entretanto, com prazos suspensos em razão da pandemia”, informou a assessoria. Logo após o segundo contato da reportagem, Moraes tirou do ar sua página no Facebook. Até aquele momento, o policial mineiro vinha mantendo o mesmo tom nas redes sociais. “A raiz de todo mal, mesmo que muitas vezes operando das sombras: ((( )))”, ele postou um pouco antes de apagar sua conta na rede social. Procurado por meio da assessoria da PM, o policial não se manifestou.

ÉPOCA obteve, por meio da Lei de Acesso à Informação, dados que apontam um aumento no número de investigações sobre apologia ao nazismo feitas pela Polícia Federal. De 2009 a 2019, foram abertos 99 inquéritos para apurar eventuais episódios — 24 em 2019, número maior do que em qualquer outro ano. Ao todo, 66 foram concluídos, sem que seja possível saber o resultado ou indiciados. São Paulo (38) e Rio de Janeiro (12) concentraram o maior número. Não existem números totais das investigações realizadas pelas polícias estaduais.

Um levantamento da ONG Safernet, que promove os direitos humanos na internet, apontou que recebeu, em junho de 2020, 3.616 denúncias sobre manifestações neonazistas no Brasil, o maior número desde o início da série histórica, em 2006. Em junho de 2019, foram 31 denúncias apenas.

Nos raros casos de prisões motivadas por propagandear ideias nazistas, elas não costumam durar. Um empresário de Jundiaí foi detido no final de maio com bandeiras nazistas, além de um arsenal e munição de uso restrito, em seu escritório. Mas ele alegou que era colecionador e logo foi solto. Em junho, três homens com roupas com a suástica nazista foram presos durante uma manifestação contra o presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista. Dois dias depois, também foram liberados sob a justificativa de que aquela era a roupa de uma banda de rock e que passavam pelo local porque não sabiam da manifestação contra o presidente.

Christiano Jorge Santos é professor de Direito na Pontifícia Universidade Católica e promotor de Justiça em São Paulo. Depois de passar dois anos investigando crimes desse tipo, escreveu o livro Crimes de preconceito e de discriminação e tem uma explicação para a aparente impunidade de que desfrutam os neonazistas brasileiros. A legislação, em sua avaliação, é muito subjetiva.

“Em junho, houve 3.616 denúncias sobre manifestações neonazistas no Brasil, segundo a ONG Safernet, que promove os direitos humanos na internet. Já no ano passado, as investigações da PF sobre apologia ao nazismo tinham dado um salto”

Pela Lei 9.459, de 1997, é crime fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo. Parece tudo muito claro, mas Santos disse que o difícil é comprovar os “fins de divulgação”, o que faz com que a maior parte das investigações morra na praia. “Até provar que focinho de porco não é tomada, já passou o tempo. Tudo fica dentro de um subjetivismo muito grande”, afirmou o promotor. “Desconheço que exista no Brasil alguma condenação especificamente por esse artigo.”

Aparentemente, a falta de punição tem deixado os neonazistas mais à vontade. No começo de julho, um participante em uma manifestação a favor do presidente Jair Bolsonaro na Avenida Paulista deixava à vista no braço uma tatuagem do Totenkopf, símbolo de uma caveira que foi criado na Prússia e depois adotado pelo Partido Nazista. Outro símbolo bastante utilizado por extremistas brasileiros é o 88, uma referência à oitava letra do alfabeto, o H. A sigla HH abrevia a saudação nazista “Heil Hitler”. “A sensação de impunidade faz com que se sintam muito seguros”, disse Adriana Dias, doutora em antropologia social pela Universidade de Campinas (Unicamp) e especialista em neonazismo.

Essa confiança chegou aos altos escalões no começo do ano. Em janeiro, Roberto Alvim, secretário especial da Cultura do governo federal, fez um discurso para anunciar o Prêmio Nacional das Artes, projeto no valor total de mais de R$ 20 milhões. Sua fala copiava trechos de citações do ministro de propaganda da Alemanha nazista, Joseph Goebbels. Diante da reação da opinião pública, Alvim acabou demitido.

Estudiosos dos movimentos neonazistas no Brasil são reticentes em fazer uma associação direta entre a chegada de Bolsonaro ao Planalto e o fortalecimento desses radicais. Em grupos de Telegram acompanhados por pesquisadores, neonazistas são, muitas vezes, críticos ao governo. Não aprovam a aproximação do Brasil com o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e denunciam o que chamam de “tendências sionistas” da atual administração. Eles se aproximam e se afastam do governo Bolsonaro, dependendo do momento, numa relação de amor e ódio. “Eles tendem a gostar da agenda de costumes e criticar a econômica”, afirmou Alexandre Almeida, pesquisador do Observatório da Extrema Direita, vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

Historicamente, os grupos neonazistas se dividiram entre aqueles que tentam retomar a ideologia da Alemanha da década de 1930, os negacionistas do Holocausto, com produção de livros e panfletos que tentam negar a perseguição e morte de judeus na Segunda Guerra Mundial, e, por fim, uma parcela dos skinheads. “Uma particularidade do caso brasileiro é a dificuldade de repetir o discurso supremacista branco por causa de nosso componente étnico”, disse Odilon Caldeira Neto, professor de história contemporânea na UFJF.

No dia 21 de julho, o Observatório Judaico dos Direitos Humanos publicou um relatório que indicou um aumento de manifestações antissemitas no Brasil, citando estudos nacionais e internacionais. “De uma forma geral, o discurso de ódio vem crescendo, muito em razão da polarização no contexto brasileiro e global. Seja por bem ou por mal, a internet e as redes exteriorizam o pensamento mais íntimo das pessoas”, disse Rony Vainzof, secretário da Confederação Israelita do Brasil (Conib).

“Seu judeuzinho verme”, ouviu o autônomo Marcos Reis, de 57 anos, de um homem que caminhava em sua direção em Jaguariúna, no interior de São Paulo, no início do ano. De acordo com seu relato, a identificação imediata de sua religião se deu pelo fato de ele estar vestindo o quipá, objeto religioso utilizado por membros da comunidade judaica. A agressão verbal se converteu em agressão física — chutes e socos que resultaram em prótese dentária quebrada e um novo trauma.

“O Brasil sempre foi um lugar onde vivemos muito bem. Queremos que isso continue e que o episódio tenha sido um caso isolado”, disse o presidente executivo da Federação Israelita do Estado de São Paulo, Ricardo Berkiensztat. Representantes da entidade acompanharam a vítima na delegacia e custearam seu tratamento dentário. A atenção para o caso não foi suficiente. Mesmo tendo sido apresentado a fotos de suspeitos, Reis não conseguiu identificar seus agressores. Como não havia câmera de segurança no local da agressão, o caso é dado como de difícil resolução.

Fonte: Revista Época


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