Chutzpah: a importância da ousadia

Por Guilherme Horn: Era uma tarde tranquila em Tel Aviv, no outono de 2016. Eu estava saindo de uma reunião quando soou o alarme anti-mísseis. Para minha surpresa, nada do que eu esperava aconteceu. Não teve correria para os abrigos, gritos, nada. Era como se as pessoas não estivessem nem ouvindo a sirene. Seguiam seus caminhos normalmente. E assim também o fiz.

Durante muitos anos, cada vez que este alarme soava em Israel, as pessoas corriam apressadamente para os abrigos anti-bombas, que existem por toda parte e toda casa tem o seu. A velocidade com que se chegava a um abrigo podia fazer a diferença entre viver e morrer. Os gritos histéricos se misturavam ao som do alarme. E os rostos apavorados mostravam a preocupação com quem poderia não ter conseguido chegar a tempo a um abrigo.

Hoje não mais isso acontece, embora os mísseis continuem sendo disparados contra Israel com frequência. E a explicação para isso atende por dois nomes: Iron Dome. O domo de ferro é a tecnologia desenvolvida pelo pequeno país, menor do que o Estado do Rio de Janeiro, que é capaz de, em menos de 1 segundo, identificar que foi disparado um míssil contra o território israelense, estimar com incrível precisão onde ele cairá e, se for em alguma área que represente algum tipo de risco, o sistema dispara um míssil no sentido contrário, que vai interceptar o artefato agressor numa altura suficiente para que a explosão não cause nenhum dano ao local.

Nesta semana de 2016, nos 4 dias em que estava lá, 140 mísseis foram disparados. Quase todos foram interceptados. Os que não foram foi porque o Iron Dome identificou que cairiam no mar sem representar risco e, por isso, evitaram desperdiçar munição. A confiança da população no sistema hoje é tão grande que as pessoas praticamente ignoram os alarmes. Há diversos vídeos no Youtube disponíveis, mostrando como o Iron Dome funciona e como a população reage hoje ao ouvir a sirene.

O sistema Iron Dome é único no mundo e foi criado a partir da ousadia do Dr Danny Gold, então chefe do MAFAT, um órgão conjunto entre o Ministério da Defesa e o Exército, que é responsável pelo desenvolvimento de infraestrutura tecnológica para a defesa do país. Quando Gold trouxe a ideia pela primeira vez, os especialistas israelenses e norte-americanos a classificaram como uma loucura ou peça de ficção-científica. Disseram que tecnicamente até poderia ser possível, porém o investimento para garantir o seu correto funcionamento tornaria o projeto inviável.

O ano era 2004. Um grupo de trabalho multidisciplinar trabalhava na exploração de possíveis soluções de defesa contra os mísseis que eram disparados contra Israel. Territórios como a Faixa de Gaza ou a Cisjordânia, repletos de terroristas inimigos de Israel, ficam a poucos quilômetros das cidades israelenses.

Se não fossem as fronteiras fortemente vigiadas, um desavisado poderia facilmente entrar num destes territórios, como às vezes entramos acidentalmente numa favela perigosa ao errar o caminho numa grande cidade brasileira. As distâncias são muito pequenas. E construir um míssil é algo muito simples e barato: tubos de aço, fertilizante, TNT e um sistema simples de detonação. Um deles pronto não sai por mais do que 800 dólares. E com um problema adicional. Dado o seu amadorismo, há pouca precisão em sua rota, em função da falta de padrão de peso, quantidade e qualidade dos materiais usados. Isso adiciona complexidade a qualquer sistema de defesa.

Mas o Dr. Gold não desistiu de sua ideia. Um ano depois de apresentá-la, abriu uma concorrência global e recebeu 24 propostas técnicas dos maiores fabricantes de tecnologia do setor. Nenhuma delas chegava próximo do que ele sonhava. Após muitas reuniões infrutíferas, ele decidiu criar um grupo próprio para trabalhar na ideia.

Como não sabia se o governo israelense iria financiar sua loucura, buscou investidores privados, que concordaram em investir caso o governo não aportasse os recursos necessários. A principal missão do grupo: desenvolver um sistema antimíssil sob a perspectiva do cidadão. Os militares, segundo ele, tratavam o tema pela ótica do exército. A lógica dos militares era proteger áreas pequenas e seguir lutando. Gold queria um outro mindset: como toda uma cidade poderia se sentir protegida – o que significava proteger um raio de 10 a 50 quilômetros, algo nunca imaginado num sistema de defesa.

As tecnologias que vinham sendo desenvolvidas na época buscavam redirecionar o míssil, levando-o a explodir em áreas desabitadas. Esta solução era inviável para o propósito que Gold buscava. A única maneira de fazê-lo seria interceptando e explodindo o míssil no meio de sua trajetória. Gold foi muito criticado porque descartou boa parte da tecnologia em que as maiores empresas do setor estavam investindo e criou a sua do zero. Teve o apoio de uma empresa israelense (Rafael), que apostou em sua ousada ideia e investiu junto com ele, sem nenhuma garantia.

Em 2007, eles concluíram o primeiro budget (orçamento) formal do projeto. Conseguiram então convencer investidores americanos a embarcar na empreitada, porém um ano depois veio a crise financeira e os investidores sumiram. Em 2009, um relatório interno do governo israelense acusou Gold de estar investindo seu tempo num projeto não autorizado pelo governo. Mas ele não parou. Dizia que sabia o que estava fazendo.

No final de 2009, os investidores norte-americanos retomaram as conversas e, ao verem uma demonstração do sistema, ficaram impressionados com os avanços. Decidiram aprovar o investimento e, no ano de 2011, o Iron Dome estava pronto para ser lançado.

De lá para cá, milhares de mísseis já foram lançados contra Israel. As mortes e destruições, que eram comuns, viraram coisa do passado. Gold foi condecorado em 2012 com o “Israel Defense Prize”, o prêmio mais alto do país nessa área, pelos mesmos militares que o haviam criticado nos anos anteriores.

Se eu puder resumir esta história em uma palavra, ela se chama Chutzpah. A tradução não existe para o português, porém o termo mais próximo em minha opinião é ousadia. A ousadia para se inverter uma forma de pensar, para se imaginar algo nunca pensado, para se dedicar a construir algo que muitos consideram um sonho.

Esta é uma característica da cultura judaica, que faz com que Israel seja hoje uma das nações mais inovadoras do mundo. Um país com pouco mais de 8 milhões de habitantes, onde se vai de Norte a Sul em poucas horas de carro, o que significa um país sem mercado interno consumidor. Os produtos que são fabricados lá precisam ser vendidos em outros mercados. O país é cercado por inimigos que lutam para destruí-lo. E o terreno sobre o qual o país foi construído era um deserto há pouco mais de 50 anos atrás. Ainda há total escassez de recursos naturais – como água, por exemplo.

A Chutzpah explica, em boa parte, como esta pequena nação tem gerado milhares de patentes em diversos segmentos, como é campeã em IPOs na Nasdaq, e como tem gerado startups e tecnologias que impactam diretamente o dia a dia das pessoas, em todo o mundo, com invenções como Waze, pen drive, micro-irrigação de solos, drones… a lista é grande….

A Chutzpah vem do hábito de desafiar ideias, de se ter coragem para estimular o desafio intelectual, independente de posição hierárquica. Embora esteja arraigado numa tradição milenar, pode ser incorporado em outras culturas e empresas.

A história do Iron Dome está em detalhes no recém-lançado livro “The Unstoppable Startup”, de Uri Adoni, um investidor de muito sucesso no ecossistema israelense, sócio do JVP, um dos maiores fundos de Venture Capital de lá. O livro é repleto de exemplos de como a Chutzpah levou diversas startups ao sucesso em seus mercados. Vale a leitura e a reflexão sobre como um mindset de ousadia e desafio intelectual pode mudar uma empresa de patamar. E o mais importante: adotar a Chutzpah numa organização, embora não seja algo fácil, é possível!

Fonte: Valor Investe