“Desafio do Holocausto”: desafio à nossa Humanidade

Texto de Elizabeth Carneiro, psicóloga: Surgiu a bizarrice da vez. Ela se chama “Desafio do Holocausto”. Nele, jovens fingem ser vítimas dos campos de concentração com maquiagem simulando machucados, hematomas ou até mesmo cadáveres, interpretando como seria uma possível chegada aos céus. Ganha o “desafio” quem melhor representar o Holocausto. Nas imagens compartilhadas no Tiktok, jovens usam estrelas amarelas no peito, como as que os judeus eram obrigados a vestir na época do nazismo. Em alguns casos, chegam a fazer piadas com o trágico genocídio, que teve início em 1941.

Confesso que como neta de imigrantes judeus, essa tal “brincadeira” me doeu na alma. Cresci ouvindo histórias sobre os parentes que não sobreviveram, dos que vieram para as Américas como bichos empoleirados em navios, de irmãos que foram parar em portos diferentes, e morreram idosos acreditando que seu familiar se perdera no caminho, quando o mesmo estava bem e saudoso em outro continente; de ter que mudar seu nome para simular não ser o que se era; abastados que tiverem todo seu patrimônio tomado do dia para a noite e passaram fome; de polacas que eram convidadas para virem casar no Brasil e que quando chegavam, “a tarefa” era outra. Sem nunca terem pensado em se prostituir, se submetiam ao trabalho e guardavam cada centavo ganho para conseguir trazer mais um parente da Polônia em busca “da promessa de um novo dia” sem guerra.

Ingênua? Talvez. Esperando mais do ser humano? Com certeza. Realmente depois de tudo que ouvi nos bastidores de minha e de muitas outras famílias judias, criei a certeza de que nenhum ser humano em posse de plenas faculdades mentais seria capaz no século XXI de brincar com o genocídio de um povo. Acreditei piamente que depois das aulas de história de qualquer colégio mediano, tantos filmes sensíveis como “O pianista” e “A lista de Schindler”, não havia a possibilidade de um dia, como colunista de uma revista, tivesse que reafirmar que o Holocausto ainda importa. Brincar com tal atrocidade mostra a maldade ainda viva, o prazer “em reprisar com eficiência” o trauma de guerra, tipo de trauma gerador de mais sequelas tanto psicológicas quanto concretas da luta pelo direito de se manter vivo do que a maioria de outros traumas pelos quais o ser humano pode passar. Ou seja, ainda há muito perto de nós um pressuposto que se formos eleger algo para brincar , que escolhamos as vítimas que estão já acostumadas a apanhar: judeus, negros, índios, pobres.

Desta forma fica claro, mesmo que subliminarmente, que ainda há uma crença de que existiria uma raça e uma religião melhores do que as outras. Mata-se simplesmente porque se atribui o rótulo de ser menos do que os oriundos de outra raça. “Riquezas são diferenças”, escreveu o Titãs. As diferenças são apenas a liberdade de ser, a certeza que o outro existe e tem seu próprio brilho dentro de uma outra perspectiva de olhar a vida. E que isso é a riqueza da existência. Uma vida que vem para somar, e não para dividir ou hierarquizar. Me sinto um pouco ridícula e obsoleta falando do óbvio, do que muitos já sabem. Mas cabe a mim criar alertas sobre espaços sociais que permitem a aparição de tais barbáries.

O museu do campo de concentração nazista de Auschwitz se manifestou sobre o “Desafio do Holocausto” e classificou os vídeos como “dolorosos e ofensivos”. A instituição atentou ainda para a banalização do fato: “Nas mídias sociais, há problemas ainda mais graves, como algoritmos que promovem o antissemitismo ou a presença de negacionistas do Holocausto, uma perigosa e hedionda fonte de antissemitismo e ódio”. Trata-se de um gesto de grande força simbólica. Num mundo – e num país, especialmente – que nega ou relativiza fatos históricos como se fossem fake news, faz-se urgente conversar com os filhos. Houve sim genocídio em Auschwitz. É fundamental esclarecer a importância de ter uma consciência em relação às tragédias que envergonham a Humanidade.

Que a internet é uma terra (quase) sem lei, todos sabemos. Especialmente pais e mães, que precisam se manter atentos aos conteúdos que os filhos navegam nesses mares pouco conhecidos. Quando os pais entenderam o Orkut, foi criado o Facebook. Quando entraram no Facebook, os jovens o rotularam como “a rede social dos pais” e se esconderam no Instagram. Mais recentemente, migraram para o Tik Tok, rede social de vídeos curtos. E assim, os mais jovens lançam mão da sua alta capacidade de aderência em modismos e tentam driblar a vigilância dos pais. Os mil aplicativos de mídia hoje carecem de legislação, mas os próprios especialistas nos alertam: cada vez que uma rede social é organizada com mais regras de controle para que haja uma expressão honesta e cuidadosa, nós humanos damos um jeito de driblar os limites da ética e através da tecnologia criamos “novos espaços sem lei” como outros aplicativos.

Num mundo que tende à polarização e maniqueísmo, não temos controle nenhum sobre a intensidade e a quantidade de pessoas que serão atingidas pela naturalização e a brincadeira da “teatralização de um genocídio”. E mais, em um tempo de distorções de valores e aumento de doenças psicológicas, estabelecer a distinção “brincadeira” x “realidade” é um desafio, vide casos de pessoas que reproduzem na vida real imagens e ações que assistiram em filmes ou games, como o massacre em Columbine e o massacre no cinema do Shopping Morumbi, ambos em 1999. Não temos controle sobre a potência que esse tipo de ritual terá sobre a cabeça das pessoas, especialmente cérebros ainda em formação como crianças e adolescentes.

Ficam aqui algumas perguntas: quem são os verdadeiros criadores desta “brincadeira”? Que tipo de coisa ouvem em casa? Ou que coisas deixaram de ouvir? Isso pode ser reflexo do antissemitismo dos próprios pais? Ou do meio de convívio social? No outro extremo, o que tem o mesmo resultado, da ausência completa de monitoramento parental? Uma experiência como o “Desafio do Holocausto”, que envolve dramatização, adereços, personagens etc não chamou a atenção dos adultos dentro de casa? Você anda mesmo atento ao que o seu filho pensa e faz ? Se incomoda mesmo ou anda passivo ao presenciar atitudes que distinguem seres humanos como superiores ou inferiores? Expressa de fato seus pensamentos ou os tem de forma privada?

Importante e doloroso: um fruto raramente cai longe da árvore. Se seu filho cria, adere, ou acha graça nisso tudo, tem algo muito errado com a forma que você o orienta. Quem aceita e se engaja numa experiência de flagelação humana de qualquer minoria? Quem são os pais destas pessoas? O que disseminam sobre preconceito?

Evitando a teoria da conspiração, mas dando asas à elucubração e considerando o espetacular documentário “The Social Dillema” (Netflix): teria algum grupo se interessado em hackear os jovens potencialmente engajáveis em movimentos de seleção “de categorias humanas indesejáveis para o sistema”? São essas mentes as capazes de criar ou se engajar em qualquer movimento que pense ser “justo e razoável” peneirar a Humanidade com critérios de busca de dominação.

Ouvi uma vez de um religioso rígido que existe sim religião melhor que a outra. Caso contrário, ele teria escolhido como sua a outra. A quem interessa dividir, polarizar para reinar? Por trás de uma brincadeira infeliz e gravíssima estão milhares de hipóteses.

Meu papel aqui é estimular a proteção à saúde mental, salientando o efeito deletério das redes sociais de estimular a pior parte do ser humano. O mundo sempre tentará ser mais veloz e eficiente na invenção de bizarrices que os adultos na intenção de combatê-los. Mas este é um mal que pode e deve ser prevenido! Não se omita sobre o tema ao cuidar de seu filho.

Publicado na Veja-Rio