Ex-neonazista se dedica a “desconverter” extremistas

Recrutado aos 14 anos, Christian Picciolini compartilha há duas décadas sua história na tentativa de mostrar a jovens que existe uma porta de saída de movimentos supremacistas.

Bastou uma conversa para que o americano Christian Picciolini fosse recrutado pelo movimento neonazista. Mas levou anos para que conseguisse se distanciar dele. Hoje, ele se dedica a convencer outras pessoas a abandonar o extremismo.

A história começa em meados de 1987, quando Picciolini fumava maconha em um beco de Chicago. Foi abordado por um homem de cabeça raspada e botas pretas.

“Ele tirou o baseado na minha boca, me olhou nos olhos e disse: ‘é isso [fumar] que os comunistas e judeus querem que você faça, para te manter dócil'”, relembra.

O adolescente sequer sabia o que era um comunista (ou mesmo um judeu). Tampouco conhecia o significado da palavra “dócil”.

Quando o estranho perguntou seu nome, Picciolini ficou com medo de dizer — seu sobrenome italiano já o havia colocado em situações de bullying —, mas falou.

Em vez de tirar sarro do sobrenome, entretanto, o estranho disse que este era um motivo de orgulho e que, se Picciolini não tomasse cuidado, alguém poderia tirar dele o orgulho de ser italiano e europeu.

Isso tocou o jovem. Seus pais eram imigrantes que haviam se mudado da Itália aos EUA nos anos 1960. Ele se sentia mais italiano do que americano.

O estranho que abordou Picciolini naquele dia era Clark Martell, e o grupo para o qual o adolescente havia acabado de ser recrutado era o primeiro skinhead neonazista dos EUA: o “Chicago Area SkinHeads” — também conhecido como Cash.

Picciolini acha que Martell, então com 28 anos, saía em busca de pessoas vulneráveis.

“Ele viu que eu estava solitário, fazendo algo que me colocava nas margens — fumar baseado em um beco. Ele sabia que eu estava em busca de três coisas importantes: um senso de identidade, uma comunidade e um propósito.”

O Chicago Area SkinHeads oferecia tudo isso.

“Foi a primeira vez na minha juventude que eu sentia que alguém de fato prestava atenção em mim e me empoderava de alguma forma”. Apesar de ele sentir dúvidas quanto à ideologia do grupo, achou na época que a recompensa da inclusão era maior do que qualquer coisa que tivesse experimentado.

Até então, Picciolini sofria bullying e se sentia abandonado por seus pais, que trabalhavam sete dias por semana (às vezes, 14 horas por dia) como donos de um pequeno salão de beleza.

O jovem começou a escutar músicas de movimentos supremacistas brancos europeus e se identificou com as letras.

“Elas falavam da minha angústia de ser jovem e invisível. Das minhas frustrações em tentar fazer algo ou progredir na vida. E essas letras culpavam ‘o outro’ por esses problemas”. As letras retratavam os supremacistas brancos como guerreiros contra “sub-raças” e religiões, “parasitas que tentavam destruir a glória e a herança da raça branca”.

O uniforme neonazista, de cabeça raspada, botas e tatuagens, consolidaram seu novo senso de pertencimento.

No começo, ele ocultou de sua família seu envolvimento no grupo; mas, como o passar do tempo, passou a discutir com os pais.

“Eles eram imigrantes, e isso pode ser parte do motivo pelo qual me tornei tão anti-imigração”. Ele hoje entende que não tinha maturidade para pedir mais atenção por parte de seus pais.

Logo, a violência seria parte da vida de Picciolini. Skinheads mais velhos começaram a incentivá-lo a brigar, algo que ele achava revigorante. “A ideia era ser agressivo, entrar em brigas de rua para aterrorizar as pessoas e demonstrar força”, conta. “Mas, acima de tudo, era para mostrar a nossa bandeira”.

O grupo usava camisetas com slogans como “Poder Branco” e “Orgulho Branco”. “Queríamos fortalecer a ideia de que não tinha nada de errado em ter orgulho de quem você é e lutar por isso”. Até que Picciolini deixou de ser um soldado e se tornou líder do Chicago Area SkinHeads.

Em 1989, Clark Martell foi condenado a 11 anos de prisão por espancar uma mulher de 20 anos que havia abandonado um grupo neonazista. Martell e amigos também haviam destruído lojas de judeus e pintado suásticas por Chicago no aniversário da Noite dos Cristais, episódio em 1938 na Alemanha nazista quando um ataque orquestrado destruiu milhares de sinagogas, casas e negócios de judeus e resultou na morte de 91 judeus. Muitos membros do Cash foram detidos e condenados.

Picciolini, com apenas 16 anos, se tornou um dos poucos remanescentes. Ascendeu à liderança e começou a reconstruir o grupo. Fazia tudo de um apartamento decorado com bandeiras nazistas, banners da juventude hitlerista e pôsteres de supremacistas brancos.

“Eu criava pôsteres e panfletos de propaganda. O local também viraria o comando central, onde comecei a escrever, cantar e vender músicas racistas”. Ele estima ter recrutado diretamente mais 100 membros. Indiretamente, não tem ideia de qual pode ter sido sua influência, uma vez que suas canções foram levadas para outros países, e ele chegou a fazer shows com sua banda na Alemanha.

“A música segue viva ainda hoje, recrutando pessoas e inspirando atos de violência”, diz Picciolini, que passou os últimos 24 anos tentando desfazer esses danos. “É horrível pensar que eu, tão cegamente, acreditei em algo e não consegui ver o quanto era danoso às outras pessoas. Não há desculpa para isso. Não consigo explicar o fato de que participei de coisas que glorificavam a morte de inocentes”.

Um caso particular atormenta Picciolini: quando ele tinha 18 anos, depois de uma noite de bebedeira, ele e seus amigos foram até um McDonald’s, onde alguns jovens negros esperavam na fila para serem atendidos.

Bêbado, ameaçou os jovens, que saíram correndo. O grupo neonazista os perseguiu. Um dos jovens negros sacou uma arma e disparou, sem acertar ninguém. Picciolini se atirou sobre ele.

“Lembro de bater nele, chutá-lo, socá-lo até seu rosto inchar. E lembro dele no chão olhando para mim enquanto eu chutava. Seus olhos me imploravam para que eu o deixasse sobreviver”. Pela primeira vez, algo dentro dele fora tocado.

“Por um segundo, pensei que poderia ser meu irmão ou alguém que eu amava. E reconheci que eu estava não apenas causando dor a ele, mas também à sua família e às pessoas que ele amava”. Apesar desse momento de empatia, Picciolini continuou sendo membro do grupo por mais cinco anos. Ele diz que não tinha coragem de abandonar as pessoas que haviam lhe dado uma identidade desde seus 14 anos.

“Tinha medo de voltar ao nada que tinha antes, de não valer nada. Eu achava que, quando estava recebendo atenção e causando medo, estava recebendo respeito”. Hoje, ele percebe que respeito não tinha nada a ver com aquilo, mas só depois de diversos encontros com as pessoas que ele deveria odiar abrirem seus olhos.

Picciolini se casou aos 19 anos e, aos 21, tinha dois filhos. Ele conta que sua mulher era gentil e progressista — e odiava que ele estivesse envolvido com supremacistas brancos.

Em casa, com a família, era outra pessoa. “Não queria recrutar minha mulher e meus filhos. Inconscientemente, eu sabia como era ruim, perigoso e violento. E não queria eles envolvidos ou associados a isso”. Para se sustentar, Picciolini abriu uma loja de CDs de música, na qual vendia álbuns de diferentes ritmos — mas também sua própria música e a de outros grupos racistas —, de onde vinham cerca de 75% de seus lucros.

“O que eu não esperava era que pessoas de cor, gays e judeus também entrassem na loja”, conta. Picciolini sabe que não era por acaso, uma vez que ele era amplamente conhecido como supremacista branco.

“Aquelas pessoas entravam [na loja] para me desafiar, mas escolhiam fazer isso por meio da compaixão, em vez da agressão. Sou grato por isso, porque me permitiu, pela primeira vez, interagir de modo significativo com as pessoas que eu pensava odiar”.

Esse contato pessoal se mostraria vital para ele.

O rapaz se lembra especificamente de uma conversa com um adolescente negro que costumava fazer muitas perguntas sobre a música vendida na loja.

“Um dia, ele entrou e estava claramente chateado. Não estava como o adolescente feliz de costume. Perguntei o que tinha acontecido, e ele contou que sua mãe havia sido diagnosticada com câncer de mama naquela manhã”.

O mesmo diagnóstico havia sido recebido pela mãe de Picciolini pouco antes. De repente, ele viu que conseguia se conectar com o adolescente e, por um momento, esqueceu suas crenças racistas. Os dois tiveram uma conversa longa sobre a vida, o amor e as coisas de que gostavam.

Ao longo do tempo, experiências do tipo se repetiram, à medida que Picciolini começou a se conectar justamente com as pessoas que ele achava que precisava manter distantes da sua vida.

“Foram essas pessoas que escolheram me tratar com compaixão, quando eu menos merecia, que tiveram o efeito transformador mais poderoso em mim. Encontros humanos ainda são a coisa mais poderosa que eu já vi para quebrar o ódio”.

Aos 22 anos, Picciolini viu seu casamento desmoronar. “Eu não consegui priorizar minha família ao movimento. E ela me deixou”. Foi o gatilho final para Picciolini fechar a loja de música e abandonar a supremacia branca.

“Gostaria de poder te dizer que houve um grande momento de ruptura, mas não. Eu fui desaparecendo. Entreguei a liderança a outra pessoa. Usei a desculpa de que precisava me dedicar à minha família e a buscar emprego e que voltaria depois. Não tinha a intenção de voltar, mas naquele momento não tinha coragem de dizer a eles”.

Hoje, ele consegue olhar para trás e ver que causou danos tanto a estranhos quanto às pessoas mais próximas. “Assim que consegui refletir a respeito, senti o peso de tudo o que havia feito”, conta. Durante cinco anos, ele tentou esconder seu passado, fazer novos amigos e achar um emprego, tudo sem contar o que havia feito na juventude.

Mas, em 1999, em depressão profunda, Picciolini não sabia ao certo quem era ou qual era o seu propósito. Só sabia que queria ser uma pessoa melhor. “Eu acordava todas as manhãs desejando não ter acordado”, lembra. Um dia, recebeu a visita de uma amiga, que o incentivou a se candidatar a um emprego na IBM, onde ela havia começado a trabalhar recentemente.

“Eu achei que ela estava louca. Eis uma empresa de tecnologia da lista da ‘Fortune 100’, e ela queria que eu me candidatasse, um ex-nazista que havia sido expulso de seis escolas, que sequer tinha um computador ou que havia cursado a universidade. Mas eu a ouvi. Ela era uma amiga, e eu não tinha muitos amigos na época, e prometi a ela que iria à entrevista de emprego”.

Picciolini acabou conseguindo um emprego júnior instalando computadores em universidades e pontos comerciais.

Pela primeira vez em muito tempo, ele sentia alguma esperança e ficou animado — até descobrir, no primeiro dia no emprego, que faria um trabalho em uma das escolas das quais fora expulso por brigar e protestar.

“Fiquei aterrorizado. Achei que essa nova esperança cairia por terra assim que alguém me reconhecesse”. Ele se escondeu pelos corredores da escola, tentando evitar ser reconhecido. Passou por John Holmes, chefe da segurança escolar.

Holmes não o reconheceu, mas Picciolini se lembrava dele. Quando adolescente, ele costumava antagonizar com o segurança negro. Naquele dia, porém, a sensação de que precisava se redimir foi ainda maior do que seu medo de ser notado.

Ele então seguiu Holmes até o estacionamento da escola e o tocou no ombro.

“Ele se virou e deu um pulo para trás quando me reconheceu. Estava com medo”. Sem saber muito bem o que fazer, Piccioloni estendeu a mão e disse: “Me desculpe”. Holmes o cumprimentou e agradeceu por desculpar-se, mas emendou que, se ele realmente estivesse sendo sincero, precisaria fazer mais.

Os dois sentaram para conversar. O rapaz contou sobre suas experiências e disse que tinha abandonado o grupo. Holmes o abraçou e o fez prometer que seguiria contando sua história.

Esse foi outro momento de inflexão, que ajudou Picciolini a entender que fugir não era uma opção — ele precisava encontrar uma maneira de reparar todo o dano que havia causado e pedir perdão àqueles que tinha magoado.

“Honestamente, Holmes salvou minha vida naquele dia. Não sei se, sem a orientação dele, seu encorajamento e perdão, eu teria encontrado coragem”. No início, ele não estava certo do que deverá fazer. Mas então, pouco tempo depois, estava andando pelo shopping quando um homem passou e disse: “Tatuagem bacana, cara. White Power!”.

Ele havia reconhecido as runas nórdicas tatuadas no antebraço de Picciolini. Para a grande maioria, esses não são símbolos óbvios de ódio — mas foram cooptados por grupos supremacistas brancos.

Essa fora sua primeira interpelação informal. Foi a primeira vez, depois de deixar o grupo, que ele falou com alguém que ainda acompanhava o movimento.

Após um diálogo breve, pareceu que o homem havia entendido por que Picciolini havia decidido sair e, mais importante, que havia um caminho para que ele tomasse o mesmo caminho se assim quisesse.

“Não sei o que ele fez, mas saí pensando que compartilhar minhas experiências poderia ajudar outras pessoas a entender que existe uma rota de saída.”

E foi aí que ele passou a usar sua história para tentar convencer outras pessoas a abandonar grupos extremistas.

Já foram mais de mil desde então — dos quais, ele acredita, quase 400 tenham decidido sair dos grupos dos quais faziam parte, de supremacistas brancos a estrangeiros que haviam viajado para a Síria para se juntar ao Estado Islâmico.

“O que move as pessoas em direção a esses movimentos não é a ideologia”, defende. “A ideologia é o componente final que dá a elas permissão para sentir raiva”. Picciolini acredita que são alguns “buracos” que aparecerem em nossas vidas — incidentes que geram trauma ou sensação aguda de abandono — que leva algumas pessoas a se juntarem a grupos extremistas, em busca de identidade, propósito e de um senso de comunidade.

“Quando converso com essas pessoas sobre deixar esses movimentos, nunca discuto ideologia com elas. Não digo que estão erradas, ainda que, claro, eu saiba que elas estão. O que eu faço é escutar, escutar e tentar identificar aqueles ‘buracos’, para encontrar maneiras de preenchê-los”.

Picciolini sabe, entretanto, que suas ações do passado continuam reverberando até hoje — e causando danos. Em uma conversa com um jornalista dois anos atrás, ele descobriu que o supremacista branco Dylann Roof, que matou nove pessoas em um ataque em uma igreja em Charleston em 2015, era fã da música que ele fazia muitos anos atrás.

Quatro meses antes do atentado, Roof escreveu em um site que de conteúdo racista que havia assistido a um documentário sobre skinheads e que procurava mais informações sobre a banda que aparecia nas imagens. Quando o repórter confrontou Picciolini com os versos, ele olhou com horror para os versos que havia escrito quando era adolescente.

“Fiquei arrasado por saber que posso ter tido alguma influência no que ele fez. Ele entrou em um lugar de adoração e matou nove pessoas que achavam que eram sub-humanos, que em minhas letras eu tratava como alguém que estava destruindo nosso país”.

Além da música de Picciolini, Roof também consumia notícias de sites de extrema direita que disseminam estatísticas falsas sobre crimes perpetrados por negros contra brancos.

“Assim como essas estatísticas, minhas músicas também promoviam a ideia de que negros era responsáveis por todo crime que acontecia nos Estados Unidos, todo estupro. Essas foram as ideias que o levaram àquela igreja e a assassinar nove pessoas inocentes — e me sinto muito responsável por isso”. Ele sabe que não há como voltar no tempo e fazer com que as letras que já inspiraram tanto ódio desapareçam. Mas está comprometido em expor as mentiras racistas nas quais um dia acreditou e tentar evitar que outras pessoas sigam o mesmo caminho.

“Não há nada que eu possa falar ou fazer que leve embora toda a dor que eu causei.”
“Meu objetivo no futuro, além de ir às comunidades às quais fiz mal e tentar reparar o dano que causei, é eliminar que estragos semelhantes aconteçam com gerações futuras”.